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Pensamentos e invenções.

...tudo invenções.



Domingo, 24.08.08

Domingo, querido domingo...

 

 
Uma neura assaltou-me. Sinto-me afastado do mundo, à parte das coisas, virado para lado nenhum, cumprindo tempo entre um acontecimento e outro. Arrasto-me por aí sem vontade, transporto-me para sítios, deixo-me ficar até à hora de mudar de lugar. O mundo de forma automática, sem encantos, como uma tarefa a cumprir.
 
Pessoas por perto e eu tão longe. Miro modos, medos, passeios, formas de estar, Enxergo outros tantos olhares de quem faz um frete ao mundo pensando apenas na patroa. Nos lugares a visitar, só por visitar, a reboque do usual, sem tempo ou conhecimento de um proveito próprio, algo para si, só para si. Uma moça displicente, sentada de rompante num sofá do centro comercial. Um velho gasto de vida noutro, um homem a dormir, outro ainda, com a compostura de quem tem ainda ilusões a cumprir apesar da idade avançada - passada do meio da vida uma década, talvez mais. Adivinho coisas, alinhavo histórias sobre este ou aquele, personagens gratuitas a passearem-se na minha frente. A rapariga displicente beijada por outra, um encontro combinado, uma saudade apagada. Displicente ainda, displicência como forma de vida, a conjurar, a pensar naquele amontoado de gente comum, sem um interesse, com a ideia fixa noutras vidas sonhadas reais, o sonho presente a cada hora do dia, o seu ar matreiro a facturar razões que alimentam o seu modo de estar, displicente, pronta para se enterrar em sofás de centros comerciais, de forma ousada, sem compostura, a dizer ao mundo, a mostrar nos gestos o desprezo sentido pelas maneiras banais com que se veste e anda – “olhem para mim, tomem os meus modos como espelhos, acordem para a minha ilusão, deixem-se de tretas, acompanhem os meus gestos, vistam-nos, vejam como eu sou bela, virgem de parir, como o mundo por minha conta “. - Até que este te peça contas, foi o que pensei. Pensei ainda na sua cabeça a prémio, nas milhentas criaturas a quem observei os mesmos modos, as mesmas certezas, ocas, completamente ocas, caída ao primeiro sinal dos tempos, tomadas na roda viva instituída, deitando por terra créditos conseguidos, completamente esquecidos quando a coisa se torna séria, quando o mundo te pede responsabilidades e te exige pagamentos de contas de dinheiro ou de actos. Um dia eras bela e gira, no outro cidadão contribuinte, com varizes, rugas mal disfarçadas, filhos agarrados às tuas saias a exigir, também, compostura, exemplos para que não se percam como alguns dos conhecidos da tua vida passada. E tu, velho? Que fazes aí sentado nesse sofá de centro comercial com olhar ausente? Eu digo-te, esqueceram-se de ti! És uma peça de decoração, foste arrastado para esse lugar como poderias estar num qualquer banco de jardim a passar tempo. Alguém te castiga, não acredito na tua vontade de estares neste local. Nem olhas para ninguém, estás completamente ausente. Não acredito em sonhos povoados pelo cenário à tua volta. Estás aí, dentro em pouco uma filha, uma nora, uma neta, alguém com quem vistes resgata-te, encaminha-te como um zumbie para outro qualquer lugar deste mundo, sem proveito algum para o conforto da tua existência. Vejo-te a roupa cuidada, as peças condizentes, - com cores castanhas pois não precisas de ferir os olhos de ninguém. Ai! Vejo-me no teu lugar com vontade de arrancar cabelos, descompor a menina displicente, aquela sentada à tua esquerda. Vejo-te de volta da sopa do jantar, o teu corpo suspenso numa cama a aguardar outro dia sem nada que fazer neste mundo que não a missão de alegrar outros pelo suposto prazer da tua condução ao centro comercial ou a outro sitio qualquer da sua eleição.
 
O homem a dormir, de boca aberta, sem história para me contar, só o testemunho do sono que o faz cabecear o ar, abrir ainda mais a boca. O do meu lado esquerdo sim. O seu ser perturba-me. Pedi licença ao sentar, nem um olhar de volta. Aposto no seu desprezo, na crítica mordaz sobre a boca aberta do homem da frente, o tal cheio de sono e sem histórias para contar. Adivinho ainda uma vida activa de trabalhos por conta de outrem. Adivinho uma reforma certa ao fim de cada mês, adivinho a patroa de loja em loja a mirar coisas. Asserto no olhar que deita para este mundo, sem confissão de fastio ou objectivo algum para além do gozo deste novo estado: aposentado do mundo do trabalho, presente neste novo mundo de reformados. Os dias vividos a inventar alegrias, a forçar os seus gostos nas coisas mundanas, a esconjurar a morte, a empertigar-se, a não dar troco a um pedido de licença para sentar, a esgrimir razões de sapiências mal aprendidas, dirigidas para os saberes que não o desta vida de reformado do trabalho assalariado. E agora amigo? Como vai ser a tua vida? Entregas-te, pensas na imortalidade enquanto vais deitando um piscar de olhos ao sagrado? Já sei!!! Tens fé no devir, acreditas – como eu – que o melhor está sempre para chegar. Sentes-te mortal, trapaceias a coisas com milagres… vá lá, dá-me um dica sobre o que estás a pensar, diz-me como é a tua vida de reformado recente, como te dás com a patroa, se gostas destes passeios de domingo no centro comercial, se o sofá em que te sentas é do teu agrado… diz-me tudo, eu quero perpetuar a tua história em livros, foste apanhado pelo meu olhar num dia de neura e, acredita, talvez tenhas estado a um passo da imortalidade. Não sei o que vai ser da tua imagem, não sei o que vai ser da imagem do velho, do homem que dorme ou da menina displicente. Talvez algum de vós ensombre os meus sonhos e se torne personagem de um escrito, que as pessoas gostem de ler e se entretenham a imaginar quem teria sido este ou aquele personagem, encontrado num centro comercial, num domingo ventoso em que alguém conheceu os seus traços e os aventou para a imortalidade. Julgo todos vós, os quatro que retrato nesta espécie de… nem sei o que lhe chame, estejam longe de imaginar-se postados num blogue da Internet. A sua imagem retratada pela minha imaginação, eventualmente errada, sobre a representação das vossas vidas. Imagino um dom acrescentado aos meus poderes, o de conferir destino às vossas vidas através da minha caneta. A menina displicente encontrou o amor da sua vida. Os seus vinte anos foram completamente esmagados pelos trinta de um rapaz recentemente conhecido. À vista de outro modo de estar, sem displicência, completamente arrebatada pela figura da nova conquista, tomou a menina em mãos a tarefa de apagar de si todos os sinais de rebeldia. De repente, sem saber como, achou o máximo a invenção de poses serenas. Sentar com cuidado nos bancos dos centros comerciais, não estar com o telemóvel nas mãos a ensaiar discursos por sms. Cuidou da imagem, continuou a usar tudo o que tinha, emendou os modos, a forma de estar. Eliminou do seu vocabulário termos como careta, cota, etc. casou-se à primeira oportunidade. Arranjei-lhe emprego num call center, remunerado o suficiente para equilibra o orçamento. Ao marido dei-lhe profissão de Engenheiro, com quatrocentos contos mensais, possibilidades de carreira, um carro novo – um audi 2.0 – duas lindas gémeas, um andar às portas de Lisboa, passeios ao fim de semana, férias em paraísos tropicais, saídos de folhetos de agência de viagem, com tudo incluído. Ao Velho decidi tirar-lhe as dores da velhice; arranjo maneira dos netos ouvirem, com paciência, as histórias da sua vida. Um terapeuta arranja maneira de lhe avivar músculos. Imagino oitenta anos cheios de energia, vontade de contrariar a neta ou a nora ou a filha, sobre passeios ao domingo no centro comercial. Um massagista particular, vontade de convívio com amigos, um sorriso a cada manhã. Ao ensonado, de quem não conheci alma, fica-me a vontade de lhe desejar noites bem dormidas, pouco mais. Ao reformado recente, escrevo aqui como seu destino o seu desejo súbito de aprender mais. Matricula-se numa escola, avança nos estudos até à licenciatura. Recebe uma fortuna do euro – milhões. Embarca para uma viajem à volta do mundo sem prazo de regresso. Uns quantos negócios depois, multimilionário, perfeitamente activo nos mistérios financeiros, compra uma casa na Sardenha. Publica um livro de memórias onde afirma que a melhor parte da sua vida foi a que se segui à sua reforma de trabalhar por conta de outrem. Diz ter tido muita sorte na vida. Sem saber como, num domingo à noite, veio-lhe o desejo súbito de mudar de vida.

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por Manuel Alonso às 20:13



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