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Pensamentos e invenções.

...tudo invenções.



Sexta-feira, 13.09.13

Diário de uma dona de casa

"Porque se queixarão as mulheres das lides domésticas se basta um pouco de imaginação?”´´

Querido diário, decidi encetar uma nova relação contigo e começo por te forrar de cor de rosa choque para celebrar a minha disposição.

O meu marido foi passar uma semana fora. Depois de investigações preliminares, conclui que o assunto era mesmo trabalho e que o grupo é suficientemente cinzento para o manter em segurança, longe da cobiça de mulheres de vida fácil, ou putas como se dizia no tempo do meu avô.

Querido diário, descupa ter empregado a expressão “putas” mas decidi que seria uma excelente oportunidade para mudar esta relação. Como sabes, temos sido muito formais, demasiado formais e o que está na moda é a informalidade. Imagino que vamos passar uma semana de reflexões inesqueciveis.

Como hoje é segunda feira, aproveitei para passar mais uns minutos na cama, que como sabes (estavas mesmo ali à beirinha da banca de cabeceira) transformaram-se em horas. Estou certa que esta vida de doméstica é a verdadeira culpada da exaustâo em que me encontrava. Mas sobrevivo e decidi prescindir do rimell e do blush para não perder mais tempo deste meu primeiro dia de libertdade.

Almocei com a Clotilde por já estar combinado desde sexta-feira passada. Foi enfadonho, já não suporto o ressonar do marido sempre ali presente. A gaja (lembra que agora somos informais) ou deixa o tipo ou não anda por aí a contar a sua infilicidade, causada pelo ressonar do marido quando toda a gente sabe do Simões, que também deve ressonar de noite e nunca de dia quando se encontram para a marmelada. Comi filetes de pescada ao jantar e a casa amantém-se limpa e arrumada como nunca. Experimentei beber um copinho de vinho do porto depois do jantar, para imitar o meu marido, que bebe um wiskey depois da habitual meia garrafa de vinho tinto. Confesso que fiquei tonta, aquilo não deve ter calhado bem com as duas cervejas e o martini antes da refeição.

Hoje, terça feira, descobri que o alcool não é aquilo que esperava. Nem sei como há bebados. Aquilo dá um mau estar de manhã que nem as obrigações a que me tinha prometido me arrancaram da cama antes das duas da tarde. Para além do rimell e do blush, também não tomei banho, vesti um fato de treino e fui num pulo para a aula de body balance. No ginásio dei conta da falta da toalha e resolvi que tudo se compunha em casa não me lembrando de que era o dia da reunião da tuppware. Tinha a Gina e a Perpétua à espera, a Lucia chegou depois e a Magda telefonou a dizer que não podia. Voltei a jantar filetes da Pesca Nova e, como sou teimosa, bebi dois martinis e quatro cervejas. Já tomei nota para não esquecer de comprar cervejas e uma garrafa de matini antes do meu marido chegar. Seria estranho, eu que nunca bebi ter dado conta do alccol todo lá de casa, justamente na semana em que estava sozinha. O homem ainda pensa que perdi a cabeça. São duas da manhã, ainda não tenho sono, talvez o terceiro wisky acabe de vez com esta espertina. Lembrei agora não ter tomado banho e ter faltado à depilação. Amanhã, isto é: hoje que já são tantas da manhã, tenho de cancelar a minha agenda semanal. Afinal era suposto arejar a minha vida e não continuar na obrigação enfadonha da minha rotina de doméstica. Já tomei nota mentalmente e ficas desde já a saber que não vou ao clube das donas de casa marcado para as nove. Depilação só se for meia perna. Aliás, não vai ser nenhuma parte da perna que visto calças. Não me posso esquecer de tomar um banho.

O meu marido queixa-se muito das quarta-feira como já te tenho contado. Apesar de ter descoberto a razão da sua indisposição com este dia da semana, por estar ligado com o alcool não me atrevo a dar-lhe a receita. Também não me atrevo a dizer que um martini de manhã, logo ao acordar, ajuda a suportar a ressaca do dia anterior. Confesso que não era bem de manhã se atender a que já eram três da tarde e ainda fiquei mais meia hora para que o remédio fizesse o efeito, mas eram nove horas de sono e correspondiam às sete da manhã num dia normal, por isso, querido diário, peço que consideres que era de manhã quando tomei o martini para remediar a terrivel dor de cabeça.

Fazendo contas, julgo que seja uma boa altura para experimentar aquilo nunca experimentei: viver a noite. Não tenho planos e isso agrada-me. A aventura leva à surpresa e o que mais preciso é de luzes fora desta casa entediante. Por falar em casa, querido diário, dei conta de pó acumulado e dei uma esfrega rápida do chão da cozinha. Apesar de não se notar sujidade, o cheiro do detergente ainda é um balsamo para a minha existência. De caminho lavei a louça do jantar e, quando dei conta, já era noite. Depois de vestir o tailler preto, quando já ia a sair a porta lembrei-me da merda do banho que ainda não tomara. Aproveitei a lavagem rápida dos sovacos para passar uma gilette. Dei conta precisar de renovar o channel e, à falta de melhor, usei o ambientador da casa de banho, aquele com cheiro a lavanda.

Já na rua lembrei não perceber nada de saidas à noite. Também não queria dar bandeira ou motivos para as coscovilherias das minhas amigas terem assunto para falar durante meses. Não liguei para nenhuma, levantei o braço e assumi uma pose de filme, entrei no taxi e pedi para me levar a um restaurante conhecido, menti dizendo que não era da cidade. O taxista despejou-me no Ritz, mesmo a calhar com a minha curiosidade de entrar num sitio como aqueles. O Maitre aconselhou Pulette au Vin com ervas aromáticas que afinal era galinha estufada com uns raminhos que coloquei delicadamente de lado. Tive sorte em não ter fome, valeu a garrafa de Dona Ermelinda, um dos vinhos mais baratos da carta mas que ainda assim custou uma fortuna. Não sei porquê, mas os homens olhavam-me como se a galinha fosse eu. Sem a ajuda do tinto provávelmente tinha fugido dali sem pagar a conta. Acabei no bar de volta de uma coisa chamada daikiri e mais uma vez tenho pena de não poder dizer ao meu marido que aquilo é muito melhor do que Porto ou o whiskey, melhor em todo os aspectos, pena os efeitos segundários e a fortuna que aquilo me custou. Juntando a conta da lavagem do taxi por ter vomitado os tapetes, as costas dos bancos e até a cara do taxista, não sei como vou justificar o desfalque no cartão de ouro do meu marido. Depois se vê. Olha querido diário, estou baralhada. Como hoje é sexta-feira, são seis da tarde e acabei de me levantar, sinto ter perdido um dia da semana. Bem sei que os dias têm sido intensos e entrado pela noite a dentro, que a quarta-feira ficou metida na quinta e a sexta nas duas… não vou pensar mais no assunto, tenho de me arrastar e arranjar compostura para sair de casa. Como sabes, querido diário, não… não sabes que ainda não te disse mas aproveito este intervalo para te dizer estar comprometida para esta noite. Imagina que uma desconhecida me convidou para jantar. Esta mulher é o tipo de amiga que preciso, estou farta da Gina e das outras, sempre metidas na vida umas das outras e naquelas reuniões de mulheres, donas de casa, apenas donas de casa. Esta amiga escutou tudo o que eu disse e até fez questão de me pagar uma bebida no bar do Ritz, sem ela estava perdida no meio daqueles homens todos, a fazerem olhinhos, a colocar em dúvida a minha reputação de mulher séria e comprometida. Para eles era como um naco de carne e sem a minha amiga confidente nem sei como teria voltado para casa. Conversámos até altas horas e eu estava perdida com o álcool. Combinámos acabar o resto da conversa no dia seguinte. Levou-me à casa de banho e levou-me em braços à porta, chamo um táxi e despediu-se com um beijo na minha boca. Claro que foi sem querer, resultado da minha falta de equilíbrio que a obrigou a abraçar-me enquanto me enfiava no táxi. Ainda me esfregou as pernas, provavelmente para retirar bocados do cotão que eu nem tinha visto, depois disse ao motorista que podia seguir e imagina ter ficado a ver o táxi dar a volta à rotunda, sempre a dizer adeus.

Querido diário, hoje é domingo, acabei de chegar a casa depois de ter passado uma noite e um dia numa esquadra de polícia. Tenho de me apresentar todos os dias até não sei quando e confesso que a semana acabou por sair fora do que tinha planeado. Nem imaginas a confusão na discoteca. Claro que tinha de lhe partir as trombas depois de me enganar daquela maneira. Sabes, aquela gaja do Ritz não era uma gaja. Era um gajo disfarçado de gaja. Já tinha desconfiado das feições mas ontem, ou anteontem, quando nos encontrámos vinha toda pestanuda, uma cabeleira postiça a dar pela cintura e umas meias de vidro pretas que não deixavam ver os pelos das pernas. Jantámos no Ritz como combinado e, mais uma vez, tinhamos o restaurante com os olhos postos em nós. Não estranhei por julgar que era o resultado da beleza dela, ou do ar espampanante dela… dele quero dizer, que aquilo era um homem disfarçado -será que só eu é que não via a verdade? Sinto tanta vergonha - mas olha que depois ajustámos as contas quando descobri que ela era um gajo. Vi-o a mijar de pé na casa de banho das mulheres. Nem queiras saber do descaramento do tipo a arregaçar a saia minúscula e a puxar os collants de licra para baixo. Ia tendo um ataque com a revelação. Ainda levei as mãos ao peito para suster a ansia mas olha, querido diário, perdi o tino e dei-lhe um murro no nariz como aprendi no body combat. Meti-lhe os dedos nos olhos e espetei-lhe um valente pontapé entre as pernas que a deixou no chão a esvair-se. E mais, aquilo para onde aquela grande puta me levou depois do jantar do Ritz, era um bar de strep tease de homens. Imagina o meu marido a saber destas coisas todas, que vergonha, que humilhação, que medo. Pedi ao Dr. Antunes para não contar nada. O Antunes, tu sabes quem é o Antunes, aquele que vem cá a casa com a senhora para jantar. Sim, o avogado da empresa do meu marido, que é o único que conheço. Fiquei com boa impressão, o Antunes foi muito compreensivo e até me veio trazer a casa. Prometeu que tratávamos de tudo no máximo sigilo e garantiu que o seu riso era só para me tranquilizar. Não consegui a promessa de não contar à esposa porque tinha de justificar a sua saída da cama às cinco da manhã e de ter passado o sábado quase todo fora de casa para me socorrer. Depois tenho de falar com a Senhora e esmerar o próximo jantar aqui em casa.

Bom, mas não são só boas noticias, de facto fiquei com um grande problema. Apesar dos seguranças daquele bordel não terem apresentado queixa por os ter injuriado, para além da justiça dos homens tenho a justiça divina e não encontro forma de me confessar ao Padre Marcelino. Deus é mais do que o meu marido ou o banho que ainda não tomei, mas contar tudo ao padre Marcelino é que eu não sou capaz. Tenho de encontrar uma igreja, estive aqui a falar contigo para me acalmar pois tenho de sair já, tenho de encontrar um padre desconhecido para limpar esta mácula. Não que tenha sido infiel, aliás, também tenho de passar por uma farmácia de serviço porque não me lembro muito bem de uma parte da noite no bar de strip-tease e à cautela tomar uma daquelas pilulas do dia seguinte. Queira deus que ainda vá a tempo. Aquilo era só homens nus e vi algumas mulheres num atrevimento que até me fazia corar. Naquele momento ainda não sabia da traição e vi a minha amiga tão delirante que pensei não lhe estragar a noite. Afoguei a vista em martinis e dayquiris, a casa rodopiava e lembro-me de acordar deitada num sofá muito descomposta. Foi nessa altura que a gaja, que era um gajo como sabes, me convidou para a casa de banho. Coisa natural entre mulheres. Depois foi como te contei.

Agora tenho de ir, não sei se voltamos a falar assim, desta maneira sobre estas coisas, a semana está quase a terminar, ainda tenho de dar mais uma limpeza nos sovacos e mais um cheirinho de alfazema, não me posso esquecer da depilação, logo na segunda muito cedo que o meu marido chega à noitinha e preciso estar arrumada, eu que a casa continua num brinco.

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por Manuel Alonso às 23:34



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